Na Palma da Mão

Marabá, cidade Mesopotâmica, é dependente dos rios Tocantins e Itacaiunas, o maior legado da natureza àqueles que escolheram morar na faixa de terra entre os dois maiores rios da região.

A palavra mesopotâmia significa “entre dois rios” e se refere às cidades-estado, impérios e civilizações surgidas entre os rios: Tigre e Eufrates.

A civilização mesopotâmica é chamada de “berço da Humanidade”, pois ali viveram povos que deixaram para a humanidade legados como a divisão do calendário em 360 dias, a escrita, os cálculos astronômicos, entre outras invenções.

Viu alguma relação com Marabá? Pois é, a cidade mais importante do sul e sudeste do Pará também é Terra de Mesopotâmia, cravada entre os rios Tocantins e Itacaiunas, desde o final do Século XIX, quando Francisco Coelho fincou no vértice dos dois rios um entreposto comercial e lhe deu o nome de Marabá, é privilegiada por ter dois caudalosos rios, que por sua vez são irrigados por muitos outros ao longo de seu curso.

A cidade foi crescendo nas décadas seguintes e uma comunidade quilombola acabou se estabelecendo no ponto onde surgiu a pequena vila, dando origem ao que hoje conhecemos como Bairro Francisco Coelho, o popular Cabelo Seco. As grandes enchentes tangeram, momentaneamente, as famílias para lugares altos, mas sempre retornaram para o torrão de terra mais próximo dos rios.

Ao longo das décadas, os moradores do Cabelo Seco aprenderam a conviver de forma harmônica com os dois rios que banham o bairro. Eles os utilizam como fonte de alimento (pesca), diversão, lavagem de roupas e também para o consumo da água.

Eles vivem às margens dos dois caudalosos rios. E é nas margens que se sobressaem as modificações que as águas do Tocantins e Itacaiunas anunciam, impõem, frustram (na enchente) ou alimentam.

O bairro está sendo transformado, aos poucos, com obras de infraestrutura, mas a grande maioria dos moradores permanece lá e não troca sua casa simples por uma mansão em outro canto da cidade.

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os rios, amo o Cabelo Seco

“Os rios eram o nosso meio de vida. O sustento de casa vinha todo do Itacaiunas e Tocantins, seja na pesca ou na garimpagem de diamante. Meu pai foi pescador, garimpeiro e castanheiro”. É assim que José de Jesus Marques de Souza – ou simplesmente Zequinha – descreve seu genitor, Raimundo Rodrigues de Souza, que foi exemplo de homem trabalhador e honesto, que nunca deixou faltar nada para a família.

O pai de Zequinha chegou à Marabá em 1928, aos 2 anos de idade, a bordo de uma balsa de buriti, vindo do Maranhão, junto com a mãe e outro filho. Em 1945, Raimundo conheceu Maria Marques de Souza, nascida e criada no bairro do Amapá. Cinco anos depois casaram-se e, assim, começou a história da família de Zequinha.

Nascido no início dos anos 50 no Bairro Cabelo Seco, Zequinha, que hoje tem 68 anos de idade, teve uma infância regada a muito banho de rio, futebol com os amigos, travessias e pescarias. “Lembro que a gente atravessava e ia brincar de escorregar nas barrancas do Itacaiunas. Juntava todo mundo, era gente do bairro Amapá, de todo lugar. Nossa relação com o rio era de amigo mesmo. Eu amo esses rios, amo o meu bairro”, confessa.

O sorriso no rosto vem a cada lembrança das peraltices da época de criança, como comer as goiabinhas azedas que apanhava nos quintais alheios. “Era uma turma de menino, a gente já levava o sal no bolso enrolado no papel de embrulho, antes de banhar no rio, jogava uma pelada e ia nos pés de azedinha para comer. Eu chegava em casa tremendo de frio e ainda levava uma ‘coça’ para não fazer essas travessuras”.

Em sintonia com o rio desde criança, a pescaria, que antes era exercida somente pelo pai, virou também sua profissão por um tempo. Sem a facilidade de ter uma rabeta, eles utilizavam só canoa e remo para chegar ao local da pesca. “Eu e meu pai saíamos 2 horas da manhã para pescar. Havia fregueses certos, botávamos no viveiro dentro da canoa porque não tinha gelo naquele tempo. Do Santa Rosa para baixo a gente vinha encostando e vendendo peixe e, se sobrasse, tinha que ir pra rua terminar de vender. Era uma vida dura, mas era muito bom”, relembra.

 

Dona Maria foi aquela mãezona superprotetora, cuidou dos nove filhos com muito zelo, porém, assim como o marido e os filhos, ela também tinha uma forte ligação com os rios e adorava pescar. Foi aí que decidiu ajudar a família e começou a ir para as pescarias. “Naquele tempo os rios eram muito fartos, ela saia e voltava das pescarias com a canoa cheia, ajudou muito meu pai. Já minha avó lavava roupas para as famílias ricas da época. Cansei de levar os tabuleiros de roupa passada para os clientes”.

Zequinha conta que era comum ver, no entorno no Cabelo Seco, nas beiras dos rios, muitas lavadeiras, já que essa era a atividade principal das mulheres naquela época e, os homens, eram pescadores. “Elas atravessavam para a praia, para estender as roupas nos gorgulhos, que nem existem mais, soterrou tudo de areia. Lembro que a gente saia daqui pra banhar lá, ia namorar com as moças e, naquele tempo, o namoro era ternura, que nem existe mais. Os jovens agora querem ficar e se amasiar”.

Zequinha sempre foi um eterno apaixonado pelos rios, pela natureza e pela cultura amazônica e, com o pai, aprendeu a tocar e, começou a externar, em forma de música seu amor pelo local que viveu e vive até hoje. Aos 12 anos, já cantava e tocava, fazendo com que muitas pessoas sentassem ao seu redor, admirando o menino que tinha o dom de cantar e encantar.

“A minha relação com o rio é muito forte, então minhas músicas têm a ver com isso. Eu acho que fui feito no rio, por isso digo que no encontro das águas, o encontro se realizou. Vejo a criançada pulando na orla e, lembro, que no nosso tempo não tinha orla, mas acho que todo filho do Cabelo Seco, que não tiver uma esporada de arraia, não sabe contar história. Nós fomos criados nesses rios”.

Em 1973, o pai de Zequinha faleceu e os irmãos mais velhos tiveram de cuidar do restante da família. Foi, então, que surgiu o trabalho na Prefeitura, no governo de Pedro Marinho de Oliveira. Nesse momento, Zequinha começou a entender e ter interesse pelas questões sociais e pelos ciclos de mudança que o município passava.

Essas transformações, aliás, chegaram anos atrás ao bairro mais antigo da cidade. Começou pela construção da orla, depois pelo programa do Governo Federal, o PAC (Programa de Aceleração de Crescimento), que construiu casas populares próximo ao rio Itacaiunas e foram entregues às famílias de baixa renda.

 

Atualmente, os moradores do Cabelo Seco têm vivido de perto outra grande mudança, a construção de um mirante no pontal, bem no encontro dos rios Tocantins e Itacaiunas. “Vejo como um momento de melhorias. As pessoas vão ajeitar suas casas, fazer um comércio ou outra coisa. Vamos todos sofrer essas transformações, mas não vejo pelo lado pessimista. A obra é chamativa, vai trazer oportunidade pra todo mundo. Nosso bairro irá receber muitos turistas e vamos ter que recebê-los bem. Alguns s moradores também sofrerão a tentação de vender suas residências e, logo, o modelo de casas do bairro ficará apenas na memória”.

Relação com as plantas

Desde muito novo, Zequinha se conectou à natureza por intermédio dos rios, mas também percebeu que existia uma forte ligação com as plantas. Ainda menino, observava sua avó utilizar as plantas como medicamento e para fins alimentares.

“Tinha fidozogo, crista de galo que era pra micose, que a gente tinha muito porque banhava no rio; vassourinha que minha avó usava pra rezar quando alguém ficava com quebranto; mastruz com leite que fortalecia o organismo; sabugueiro, quando ficava com a barriga intoxicada… então, tinha muita coisa e aprendemos a utilizar o poder das plantas, por causa da vivência que tivemos com nossos antepassados”.

Atualmente, ele e a esposa Antonete têm o quintal lotado de plantas de diversos tipos: manjericão, arantu, boldo, moringa, dedo de Deus, alecrim, hortelã entre outros. Apesar de muitas plantas, existem aquelas que precisam de um certo cuidado, por produzirem substâncias que, se ingeridas de forma incorreta, podem intoxicar.

“O Cabelo Seco é meu lar”. Para entender o real significado dessa frase dita por Zequinha, é preciso entender a diferente entre casa e lar. Casa é uma construção de cimento e tijolos. Lar é uma construção de valores e princípios, onde os membros da família anseiam por estar nele, onde refazem suas energias, alimentam-se de afeto e encontram o amor.

Viajando por vários cantos do mundo e visitando lugares encantadores, o desejo era sempre o mesmo: voltar para casa. “Cada dia que eu levantava meu primeiro pensamento era o Cabelo Seco, o lugar que eu nasci, as pessoas que eu convivi, os pássaros cantando…”, relembrando que antigamente, existiam muitos pardais no fim de tarde na orla e, agora, eles já não aparecem mais.

Para o morador, o Cabelo Seco é um lugar bom para se viver, os amigos ainda se reúnem na calçada, brincam na orla, fazem jantar na rua e os moradores se tornaram uma verdadeira família. “O projeto Rios de Encontro ajudou muito nossa comunidade. Aqui não era ‘flor que se cheire’. Teve um tempo que realmente era um lugar violento, mas essa fase já passou, isso não faz mais parte do nosso bairro”, orgulha-se.

Inclusive, Zequinha se enche de orgulho e elogios ao projeto que ele também contribui até hoje, fazendo com que muitas crianças e jovens não se envolvessem em atividades ilícitas para participar de ações, como rodas de música, grupo teatral, danças, entre outros.

“Desde que o projeto entrou, começamos a fazer encontros casuais no quintal para contar histórias. Aí, esses jovens começaram a se interessas por isso. Dan Baron e Manoela são mestres e a experiência deles foi de muita competência para nós”.

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afetos e a arte de Camila

A identidade genuinamente de descendentes quilombolas, a negritude de homens e mulheres e o cabelo crespo fizeram o Bairro Francisco Coelho ser conhecido popular e internacionalmente como Cabelo Seco. O apego aos rios Tocantins e Itacaiunas é repassado de geração a geração pelos mais velhos e não há criança, jovem ou adulto na comunidade que não tenha histórias afetivas relacionadas à água em abundância.

Nascida e criada às margens dos dois rios, Camilla Alves Vieira, de 25 anos, apesar da pouca idade, já viveu muita coisa no bairro e por ele. Com os olhos marejados de emoção, ela contou um pouco da sua história, da sua arte e de como conseguiu mudar de vida lutando em defesa dos rios e da Amazônia de forma geral.

“Eu cresci dentro desses rios. Não sei identificar o momento exato quando aprendi a nadar. Pra mim, desde que me entendo por gente sei nadar. Até porque, desde muito novinho a gente se banha no rio”, conta, relembrando que existe uma crendice popular entre os pescadores, que afirma que quando a criança come um peixinho aprende a nadar.

A relação de amor com os rios vivida na infância divertida deu lugar, agora, à responsabilidade e ao cuidado. Camila aprendeu a importância de preservar o meio ambiente e, há mais de 10 anos, faz parte do projeto Rios de Encontro, que idealizado por Dan Baron e Manoela Souza, novos moradores da comunidade. “A minha vida inteira sempre foi nos rios. Antes de ir pra escola de manhã cedo, tomava banho no rio. Voltava pra casa e antes do almoço, tomava banho no rio. De noite, antes de dormir, tomava banho no rio. Ele era utilizado para brincar, tomar banho, lavar roupa, lavar louça, cozinhar e pescar, mas, só quando eu comecei a participar do projeto, passei a dar valor aos rios”.

O projeto eco-cultural e socioeducativo tem como finalidade valorizar o modo de vida daquela comunidade e potencializar sua riqueza cultural que estava adormecida, através de formação artística, integrando inclusive, a gestão pública e profissionais de educação, saúde e segurança.

“Temos uma história muito forte com os nossos rios que não é compartilhada. A gente vive entre dois rios e não sabia dessa relação. Foi através do projeto que consegui enxergar o valor que os rios têm para nossa comunidade”.

Ao entrar para o projeto, Camila começou a perceber as mudanças em sua vida. A menina do bairro Cabelo Seco hoje é uma mulher, artista, premida e reconhecida internacionalmente pela sua dança. Com a oportunidade de estudar e crescer como pessoa e como profissional através do projeto, Camila deu valor a todas as chances que lhe foram oferecidas. “Se não fosse o Rios de Encontro, hoje eu poderia ser uma mãe solteira ou não, mas com certeza estaria vivendo aqui no Cabelo Seco, levando uma vida normal, do cotidiano, vivendo do rio, essas coisas…”

Falar do projeto é ver nos olhos de Camila o sentimento de gratidão, porque, segundo ela, foi através dele que a menina pobre, afro descente, do cabelo seco, conseguiu formação artística e pedagógica, viajou para diversos países, como Colômbia, Estados Unidos, Nova Zelândia, para mostrar sua arte, falar sobre a Amazônia e dos dois rios em que ela cresceu mergulhando.

“Nessas viagens a gente fazia apresentações de vários espetáculos, como Lágrimas Secas, que falava sobre a seca do rio, desmatamento e as consequências de tudo isso. O “Nascente em Chamas” já levamos para Hong Kong, Nova Zelândia e, recentemente, Nova Iorque e, na Europa, apresentamos o Deixe Nosso Rio Passar e Rio Voador. Todos os espetáculos são voltados ao nosso rio, a história da nossa raiz africana e do Cabelo Seco”.

A primeira saída de Camila para fora do Brasil foi para a Colômbia, onde ela acompanhada o Mestre Zequinha para falar sobre a cultura amazônica, carimbó, história dos rios e oferecer oficinas artísticas para os estrangeiros, que ficam encantados com a riqueza cultural. “Já fomos para Hong Kong, Nova Zelândia, Washington e fizemos turnê pela Europa”, orgulha-se.

Depois de anos apenas como participante, Camila passou a ser protagonista no projeto Rios de Encontro, começando a trabalhar com as crianças da comunidade, realizando um sonho antigo. Hoje ela atua como professora de dança e se sente realizada com o que faz. “Sempre tive vontade de ter um projeto comunitário que ficasse e atuasse com a gente, nos dando oportunidade de ter um futuro na vida. Antigamente, o Cabelo Seco era muito perigoso e, quando o projeto enraizou, conseguiu mudar todo o panorama do bairro”, conta, externando a felicidade em ter o respeito da comunidade onde cresceu.

Os organizadores do projeto, Dan Baron e Manoela, conseguiram enraizar um forte legado em mais de uma década de atuação e, Camila, é uma dessas mulheres fortes que cresceram e aprenderam sobre a importância das águas que banham a cidade.

“Eles são meus segundos pais. Em todos os sentidos, Dan e Manoela me ajudaram muito, inclusive como jovem. Todos nós que crescemos dentro do projeto temos grande admiração por esse casal. Eles não deixaram que a nossa história se perdesse e sempre nos lembraram que nós podemos fazer a diferença na nossa sociedade”, narra ela, com lágrimas nos olhos, afirmando que já está há mais de um ano sem ver Dan e Manoela, por conta da pandemia.

A luta de Camila continua todos os dias ativamente, para que a próxima geração do Cabelo Seco saiba da importância da preservação e do cuidado com os rios.

“O rio não tem mais a mesma qualidade de anos atrás. Infelizmente já perdemos muito. Mas mudar essa relação depende de nós. Tudo o que posso fazer pelo Cabelo Seco eu faço. Essa é a minha história”.

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de Maria Pretinha à neta Sandra

 

Meninos viram pescadores, meninas lavadeiras. A sina no Bairro Cabelo Seco, por muitas décadas, era exatamente essa. E foi esse o ofício de Maria Pretinha (Maria Marques Furtado), uma das mais famosas lavadeiras de roupa do bairro, e hoje o de sua neta Sandra Maria Ribeiro Marques, agora com 51 anos de idade.

Sandra conta que aprendeu o ofício com a avó, quando tinha 14 anos de idade. Na entrevista para o portal Correio, ela falou apenas uma vez o nome da mãe, mas o da avó foram 17, numa mostra da ligação quase umbilical com a mulher que se tornou sua principal referência.

“Ela lavava para muitas famílias ricas da cidade. Eu gostava de estar onde minha avó estava, fosse dentro do rio, passando roupa ou com a trouxa na cabeça para levar para os donos”, sintetiza.

Ela recorda que sua infância foi marcada por aventuras dentro do Rio Itacaiunas, mais estreito que o Tocantins, mas também se divertia no meio da rua, com as colegas, brincando de tudo um pouco. “Minha avó morreu há muitos anos, mas deixou a gente sabendo um pouco de cada coisa, mas principalmente lavar roupa”, recorda-se, orgulhosa.

Além de lavar roupa, Maria Pretinha era uma das principais benzedeiras do Cabelo Seco. Morava na Rua Quintino Bocaiuva, número 197, e sua casa era referência de busca por ajuda para várias pessoas da cidade.

Sandra, como grande parte dos moradores do Cabelo Seco, não têm medo de enchente e aproveita a ocasião para ganhar dinheiro também. Segundo ela, nesse período de calamidade pública, ganha mais dinheiro ainda lavando roupa para outras famílias. “Qualquer 50, 100 reais já ajuda, né”, diz, sorrindo.

Ela sabe que o bairro está prestes a passar por uma profunda transformação, com a construção de um mirante que vai atrair milhares de pessoas para o pontal entre os rios Tocantins e Itacaiunas, e acredita que essa mudança vai possibilitar ela ganhar mais dinheiro ainda. “Quero montar um negócio, vender lanche aqui na orla, porque vem muita gente para cá. Quero fazer comida, churrasquinho, vender refrigerante e até mesmo cerveja”.

Questionada sobre o que faria se recebesse uma proposta para vender sua casa para alguém de fora, ela negou a princípio, mas depois disse que dependendo da proposta…

“Tenho que pensar se posso vender ou não, porque não tenho vontade de sair daqui. Vou ali no comércio e deixo a roupa aqui e ninguém mexe. Então, tem que dar privilégio para nosso bairro, porque aqui não tem ladrão não”, sustenta.

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que abraçou os rios e a comunidade

Acolhimento, abraço, afeto, aconchego, admiração e amor. As definições para a comunidade do Cabelo Seco podem continuar com diversos adjetivos, contudo, nenhum deles é capaz de traduzir a emoção que se sente ao adentrar as ruas estreitas do bairro ou ao avistar o brilho do sol refletindo sobre o encontro dos rios Itacaiunas e Tocantins. Palavras não são capazes de demonstrar a sensação que é lutar para que as pessoas daquela comunidade tenham uma vida melhor e aprendam a valorizar sua história, sua cultura e seus rios.

Ao adentrar em Marabá ou à Terra da Mesopotâmia – como queiram chamar – pela primeira vez, no ano de 1999, Dan Baron percebeu a pobreza com que a região, rica em belezas naturais, histórias e cultura sofria. Impactado ao passar pela Velha Marabá, viu pessoas deitadas nas ruas, casas simples e, o mais marcante, pessoas acolhedoras. “Fui recebido por uma família, sentei em uma rede e recebi um copo de suco cupuaçu bem grosso, meu primeiro sabor da Amazônia”, relembra, afirmando que ficou em choque ao avistar, durante aquela visita, a floresta destruída, queimada e centenas de castanheiras mortas.

Quase 10 anos depois, a convite de Manoela Sousa, Dan retornou à cidade e foi direto ao Cabelo Seco. Nesse momento, a emoção foi ainda maior, porque percebeu que ali existia doçura entre as pessoas, famílias reunidas, abraços calorosos e muita música e dança.

“Mas o que me tocou profundamente desde o início foi como cada criança, jovem, mãe e avó sabiam ler o rio, sua superfície e o movimento dele. Fiquei impressionado como em cada porta, em cada janela ou na pracinha, as pessoas estavam trocando conhecimentos, uma verdadeira sabedoria ecológica. Isso nos encantou. Essa humanidade com a raiz afro-indígena adormecida, nos encantou”.

O projeto Rios de Encontro nasceu em um momento em que a temperatura aumentava cada vez mais, os peixes começavam a sumir, as mulheres paravam de lavar as roupas e mais pessoas sentiam-se tocadas pelos extremos da natureza, seja pela enchente, com os rios transbordando em suas casas ou pela seca, com o rio virando pó. “Com as crianças e jovens, transformamos o Cabelo Seco em palco, uma galeria de poesia, arte e dança. A comunidade quase inteira assistia as danças contemporâneas, dança afro, transformando, assim, raízes adormecidas em raízes resgatadas e reinventadas”.

Crescendo cada vez mais com o projeto, Dan e Manoela sensibilizaram a cidade com o trabalho, que foi reconhecido pela Câmara dos Vereadores de Marabá, enriquecendo e contribuindo para novas experiências. Dan Baron, como ecopedagogo, afirma que foi extraordinário transformar o rio em palco.

“Dançamos em cima de uma balsa, a orla virou uma plateia. Vimos as pessoas experimentando coisas com músicas, jovens criando projetos de jardins medicinais e, tudo isso, acontecendo dentro de uma comunidade extremamente cercada por preconceito, racismo e desvalorização”.

O objetivo principal do projeto Rios de Encontro sempre foi conectar mais ainda a comunidade com os rios, não só como espaço, mas com a vida e a memória. E cada vez mais, jovens condenados e excluídos pela sociedade sentiam-se capazes de defender um território, inspirados pelos rios, abraçando o bem viver, protegendo os rios e movendo os sonhos do mundo.

“A intenção é que as crianças e jovens do nosso projeto possam ser capazes de explicar para o mundo, a partir de suas experiências, sobre as plantas medicinais, danças e inventando uma cultura afro-contemporânea. Somos filhos do Tocantins e do Itacaiunas”.

Para quem não sabe, Dan Baron é dramaturgo galês, diretor de teatro comunitário, teórico cultural e arte-educador de prestígio internacional que mora no Cabelo Seco há 12 anos. Ele foi aprendiz dos dramaturgos Edward Bond (Inglaterra) e Ngũgĩ wa Thiong’o (Quênia), cujos projetos de vida inspiraram uma busca duradoura por métodos de ação cultural baseada na comunidade pela justiça.

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que fez Manoela ficar

O cheiro de peixe frito vindo da cozinha; roupas penduradas em varais no meio da rua; pessoas na calçada batendo papo; crianças brincando descalças na rua; o som do rádio ligado no vizinho; as casinhas estreitas grudadas umas nas outras; o vendedor de frutas e verduras empurrando seu carrinho e oferecendo de porta em porta; o barulho do “popopô” dos barquinhos passando pelos rios e o pôr-do-sol no encontro do Itacaiunas e Tocantins sendo embelezado pelo voo dos pássaros.

A descrição foi feita numa quarta-feira, quando, ao percorrer as ruas estreitas do bairro Cabelo Seco a vontade foi de ficar e se aninhar, sentindo o aconchego e o afeto dos moradores.

Foi por meio desse cenário que surgiu o interesse em oferecer um contexto socioeconômico e cultural para a comunidade ribeirinha afro-descendente do bairro, Manoela Sousa e Dan Baron, juntamente com Deize Botelho, escreveram e idealizaram o projeto Rios de Encontro, para ofertar às crianças e jovens daquela região da cidade um processo de formação artística, cultural e educativa.

A princípio, o projeto teria duração de cinco meses – mas foi impossível não se apaixonar pelo bairro e querer ficar mais tempo – contudo, o Rios de Encontro já vai fazer 12 anos de existência.

“A orla ainda estava sendo construída quando chegamos em 2009 e ficamos bem preocupados com as obras de infraestrutura e saneamento básico e, claro, com a especulação imobiliária do local que estava sendo criada. A ideia era que o projeto pudesse cultivar e germinar a cultura do bairro a partir das histórias dos moradores, dos rios e desse lugar especial que é o encontro do Itacaiunas e Tocantins”, diz Manoela.

Logo nos primeiros meses, os encontros aconteciam em cima da construção inacabada da orla, no meio do barro e da lama. Nas conversas, os moradores contavam à Manuela e Dan, que o quintal da casa era o rio e, agora, esse vínculo havia sido cortado por uma rua, causando uma mudança profunda na vida de todos.

“Começamos a fazer rodinhas, ações e festivais nessa orla em construção, que era o quintal de várias casas. Fomos nos conectando na beleza do lugar”, relembra Manuela.

Cada vez mais atuante e enraizado, o projeto Rios de Encontro foi ficando mais ativo e contando com a participação da comunidade. “Uma vez lançamos uma bicicletada. A gente tinha nossos outdoors comunitários e a foto que colocamos foi da sumaumeira que tem do outro lado do Rio Itacaiunas, no bairro Amapá. Então, as pessoas começaram a olhar e contar histórias dessa sumaumeira, de como atravessavam o rio, em alguns períodos a pé para fazer piquenique embaixo dela”, conta, lamentando que há alguns anos, aquela área sofre com a exploração de dragas para retirada de areia e seixo, causando danos ambientas e à própria comunidade. “O Itacaiunas é um rio extremamente ferido. Ele carrega a memória e a beleza da comunidade”, avalia.

Ao longo desses anos, Manoela afirma que viu muitos movimentos sendo feitos para que a comunidade fosse remanejada do local, como o programa PAC do Governo Federal, através do Minha Casa Minha Vida, porém, as pessoas resistiram e persistiram em ficar no bairro, pelo amor e pelo vínculo existente com o rio e com a história.

Nos olhos de coordenadora do projeto, é possível ver o brilho ao falar dos rios que adentram, em períodos específicos, as ruas do bairro:

“É muito lindo, o rio enche e vai todo mundo banhar, a rua se torna um grande rio, que vem bater na porta de casa. Eu sou natural de Santa Catarina, aqui enchente é algo que assusta muito, mas em Marabá é o processo, faz parte do ciclo. As pessoas remam na rua, brincam ali… quando o rio tá cheio tem essa maravilha do volume de água”.

Dentre tantas ações, o projeto Rios de Encontro realiza diversos atos em defesa da vida e dos rios; valorização da infância das crianças, fazendo com que elas se conectem com o rio; biblioteca itinerante, onde livros são levados para casas e calçadas; o Cine Coruja, que também vai pra rua, pra pracinha e, ainda, os festivais de verão e da pipa, que têm o objetivo de motivar as crianças simplesmente a brincar. “A gente vai pra orla e falta espaço pra tanta criança. Os adultos também vão junto, querem aprender, querem soltar pipa. É um momento de beleza”.

A grande preocupação de Manoela, atualmente, tem sido com a obra que a comunidade tem acompanhado de perto, a construção de um mirante, no pontal do Cabelo Seco. Ela reconhece que essas mudanças irão favorecer a comunidade, porém, se questiona: qual o cuidado que estão tomando com as ruas e com as crianças que estão acostumadas a brincar por ali?

“A comunidade vê com bons olhos, é uma obra que vai beneficiar Marabá. Mas, quando a gente olha a placa da construção, está escrito que é uma obra portuária. Então, que intenções são essas com essa obra? É mesmo para a comunidade do Cabelo Seco? São perguntas que nos preocupam e que estão pulsando em nossa mente”.

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Publicado em 22 de março de 2021.

Expediente

Ulisses Pompeu

Orgulha-se de ter aprendido a nadar nas barrancas do Itacaiunas, enquanto a mãe lavava roupas e botava pra quarar. Já atravessou o Tocantins a nado várias vezes, inclusive ao lado dos dois filhos. Fez as entrevistas e editou o conteúdo escrito deste especial.

Ana Mangas

Formada em Marketing, trabalha na comunicação há quase 10 anos. Na infância, as brincadeiras eram nas águas do Rio Pará (Belém). Por dez anos mergulho no Rio Tapajós (Santarém); o Rio Uraim (Paragominas) foi seu refúgio aos finais de semana por 4 anos. E, há 7 anos, seu coração está afogado no Itacaiunas e Tocantins. Apegou-se a cada história deste especial.

Henrique Garcia

Natural de Belém-PA, mas criado em Marabá, é, atualmente, acadêmico de Jornalismo na UFT. Cresceu em passeio e acampamentos no Praia do Tucunaré. Usa sempre o Rio Tocantins para ir ao sitio da família, na confluência com o Flecheira. Neste especial, ajudou a escrever todas as reportagens.

Dihon Albert

Web Designer deste projeto, nasceu em Imperatriz-MA, às margens do Rio Tocantins. Ainda bebê, veio para Marabá, onde tem boas lembranças de acampamento e passeios de rabeta com a família na praia do Tucunaré.

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